sábado, 4 de julho de 2020

Mãe é nutrição.

Três meses sem ver minha mãe. Chega finalmente o dia do encontro. Anúncio dias antes meu desejo: "mame, faz aquele cozido?!". Ela não responde, mas seu sorriso orgulhoso denúncia que serei satisfeita. Mãe é nutrição. Nascemos e graças a ela que sobrevivemos, pois somos alimentados do e em seu corpo. Chego em sua casa e sou recebida pelo cheiro, pelos olhos curiosos, e por nosso desajeitamento que a distância do isolamento social nos proporcionou, além de outras distâncias que a história delimita sem que possamos nos dar conta. Preparo o pirão, pois essa é minha tarefa. Filho(a) também é nutrição. Nós, enquanto filhos, precisamos despertar a fome de nossos pais, em especial a nossa mãe. A mãe precisa desejar devorar o(a) filho(a), para que assim, possamos nos sentir imensamente desejados. A mãe se nutre da cria, assim como a cria se alimenta no materno.

Colocamos os pratos na mesa. A fome cresce. A cada garfada sobrevôo em lembranças. Aquela comida me traz de volta para o nosso laço. Eu como nosso vínculo. Sinto-me casa. Ali existe amor. O amor mais puro e primitivo. O amor de se deixar alimentar pelo outro. A comida de minha mãe é a potência de minha infância e o que me situa na vida adulta. Sentada em sua mesa brinco com o tempo, sinto que subverto sua ordem, pois ali, não há lógica, eu sou puro agora e encarno o passado e o presente. O futuro não se encaixa nesse instante. Pois, aprendi que o futuro não existe. Ah, minha mãe, sua comida me é fonte de crescimento e afeto. Eu sinto seu carinho naquela saladinha de batata doce, percebo a dedicação no bobó de camarão, prato simples, mas que exige esforço no descascar. Recebo alegremente a surpresa inesperada daquela sharque de côco e um imenso abraço quando retira do forno a travessa de lasanha que enche a boca da água e o peito de encantamento.

Recordo-me com tristeza quando pedi ao meu padrasto que me passasse aquela receita do seu caranguejo e recebi um não. 3 meses depois ele faleceu. Fico pensando: se ele soubesse de sua morte, será que ele me daria aquela receita? Ele não entendeu que o lhe pedia era nutrição. Eu lhe pedia que me alimentasse. Pedi que me desse algo seu para que pudesse guardar e fazer de meu. Meu padrasto tinha medo de dar e ficar sem nada. Os pais precisam acreditar que irão nutrir os seus filhos e não perderão suas forças com isso, pelo contrário, sentirão que no dar também recebem. Caso contrário, não conseguirão bem nutrir seus pequenos. Meu padrasto morreu e levou consigo aquela receita. Até hoje, quando vejo caranguejo penso: Puts! Jamais comerei novamente aquele caranguejo. Fica o vazio. Na verdade já havia. Sua negativa só mostra o quanto era difícil haver troca naquela relação. Tudo bem, de certa forma, ele se fez eternamente presente nessa ausência. Minha mãe, passou-me todas as receitas das comidas que lhe pedi. Pois é, ela quando me dá, sente que também recebe. Aprendo com seu ato. Minha mãe não tem medo de ser devorada. Amém!

Eu sei. Sei que quando chegar a verdadeira despedida não poderei mais provar de seu tempero, mesmo que tenha anotado todas as receitas. Eu sei. Mas veja só, será que não é isso que significa a herança? Algo que nós recebemos de nossos pais e enfim, tornamo-no nosso. Quando cozinhar suas receitas estarei unindo ela a mim. Será um encontro. Estarei ali provocando uma mistura entre o que é dela e o que é meu. Pois a herança de nossos pais só faz sentido quando a transformamos em nossa. Enquanto ela continuar sendo de nossos pais, sentiremo-nos desautorizados e submissos. Por isso digo, as receitas de minha mãe, quando chegar o momento de fazê-las também serão minhas, e assim, afirmo nosso eterno laço.

Mãe é nutrição. Mesmo que não mais beba de teu seio o líquido que me fez vida, sigo o caminho de volta à sua casa e espero seu feijão, sua galinha guisada e aquele arroz soltinho. No básico também se vive o amor. Nosso reencontro foi suave. Devoramos o cozido. Você reclamando do sal enquanto eu estava perdida naquele sabor e ato de ternura. Nesse dia não jantei. Misericórdia, como comi! Estava plenamente satisfeita. Conversamos, participei de sua rotina, aconcheguei-me no cheirinho dos seus lençóis e sonhei com o almoço do outro dia. Você havia prometido o bobó de camarão. Ah! Que chegue logo o outro dia e que eu possa mais uma vez me nutrir em você, mainha Te amo!

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O céu que arde na terra.

Celeste nasceu em noite estrelada. Filha única de um casal maduro que já havia perdido a esperança de procriar. Celeste nasce como um milagr...