sexta-feira, 5 de outubro de 2012

A cada folha uma vida.

Ray Bradbury na introdução da versão ilustrada de Fahrenheit 451 por Tim Hamilton, propõe um exercício. Sugere que os leitores pensem no nome de um livro que gostaria que ficasse protegido dos censores ou "bombeiros", e que fosse dito a razão pela qual este livro deveria ser salvo e levado a posterioridade. Não sei se seria capaz de escolher apenas um livro, pois quando olho para a minha estante tem pelo menos quatro que não poderia abandoná-los ao fogo. Cada um deles tem um significado diferente para mim. Cada um deles representa um pedaço de mim, são partes da minha história, recortes de minha personalidade. Estes livros são: Os famosos e os duendes da morte, Como me tornei estúpido, Cartas a um jovem poeta e Niels Lyhne. 

Os dois últimos são recentes e Niels Lyhne ainda estou lendo, no entanto já me transfomou. Cartas a um jovem poeta foi lido a pouco tempo em um momento de grande furor emocional e admito que ele acalmou tempestades e gerou algumas ventanias. Muitas ideias, muitos questionamentos e sentimentos foram ativados em mim através do contato com ambas obras e nas circunstâncias que me encontro, eles vêm sendo remédios valiosos. 

Falando um pouco sobre os dois tenho que dizer que Niels Lyhne me espanta e encanta a cada página. As três primeiras linhas do livro me chocaram e fizeram com que soltasse um belo palavrão em sala de aula sem o menor decoro. Fala que "Há homens - (...) que vivem como se viver fosse a coisa mais natural do mundo". E me pergunto: Não é? Será que viver de fato não é algo natural? Talvez o seja e o que o torna artificial sejam os jogos sociais, as exigências culturais, o dia-a-dia, as obrigações, os deveres e direitos, e todos os aspectos que parecem retirar de nossas mãos a capacidade de viver a própria vida como acreditamos ser possível. 

Porém, penso que talvez viver não seja natural. Não é um processo que se dar por si só. É algo que sempre tivemos que conquistar, que lutar por. Temos que rotineiramente batalharmos para manter nosso corpo em condição de atividade. Sempre fomos guerreiros em busca de mais um dia, de mais um tempo. A vida não é natural. É uma conquista diária. Árdua. Que caminha para o desgate de se própria. Não, a vida não é natural. A morte o é. Será que é assim?

Quem nunca se remoeu com a sensação de estar presenciando o passar dos anos sem estar vivendo? Quem nunca pensou que a sua vida estava sendo ditada por outro alguém? Que era um mero passageiro na sua própria história? Quem? Ninguém? Não, não é possível. Existem pessoas que passaram e passam por isso, mas tem aquelas que jamais experimentaram desse ardor. Sorte delas. Ou talvez não? Não sei bem. 

A leitura de Niels Lyhne se dá da seguinte maneira (assim a vejo): Lê-se sobre o cotidiano. A rotina do dia. E de repente algo de extraordinário acontece. No meu caso, paro um pouco, respiro, releio a parte que me abateu, penso sobre tudo e quase nada e continuo a leitura. Algo foi mudado, mas permanece um sentimento de calma e marasmo até outro golpe e assim prossegui o texto. Jacobsen, o autor, fala de variadas questões da existência. Seu discurso é sútil, no entanto de uma crueza arrebatadora. Descreve as amarguras da vida docemente e, ao mesmo tempo, nos revela as sombras que se escondem na escuridão da alma e os clarões que a torna mais leve. Somos levados a perceber as inconstâncias da vida. As ilusões, as fantasias que habitam nosso ser e nos tornam estranhos para nós mesmos. 

Tomando como ponto de partida a maneira que se dá a leitura do livro, acredito que assim seja o curso dos nossos dias. Submetidos a um roteiro e repentinamente somos surpreendidos por algo que nos escapa, que nos invade. E o quanto buscamos artimanhas para nos proteger desses descontroles, dessas fugas do roteiro. 

As minúcias de nossa fé tão frágil, tão humana. As delicadezas das relações, seus não-ditos, seus enganos. Os afetos tão instáveis, tão ferozes. Os amores na sua forma pura, ou seja, imperfeita, insensível e que perde forças diante do conhecimento e da conquista. A capacidade de imaginar, a criatividade, a infância sem embelezamentos românticos. O quanto a incerteza nos é amiga e a certeza é fim demais para nos dar esperanças. Esse eterno fluir dos acontecimentos que não nos permite experimentar a segurança, a calmaria da estabilidade. É ele que nos provoca para seguirmos adiante, mas também nos devora. E como disse o lunático na ponte no filme Walking Life "Mas os paradoxos incomodam-me, e posso aprender a amar e a fazer amor com eles".

São tantas coisas, tantas coisas suscitadas nestas páginas. E as lembranças? Ah! As lembranças são a melhor parte, pois cada parágrafo me leva ao encontro de alguém. Alguém que já se foi. Leva-me ao encontro de mim mesma em um tempo que não sou mais. É um mundo. Ainda não cheguei ao final do livro e parece que jamais chegarei. Não poderei encerrar tal obra. Ela é grande demais, como disse Creder ao passar por mim pelo corredor da faculdade: Ela está muito a cima ...

"Viva nesses livros um momento, aprenda neles o que lhe parecer digno de ser aprendido, mas, antes de tudo, ame-os. Esse amor ser-lhe-á retribuído milhares de vezes e, como quer que se torne a sua vida, ele passará a fazer parte, estou certo, do tecido de seu ser, como uma das fibras mais importantes, no meio das suas experiências, desilusões e alegrias" (RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta).

O céu que arde na terra.

Celeste nasceu em noite estrelada. Filha única de um casal maduro que já havia perdido a esperança de procriar. Celeste nasce como um milagr...