terça-feira, 4 de agosto de 2020

Não se brinca com sonhos.

No meio do caminho havia um sonho. Havia um sonho no meio do caminho. Acorda pela manhã carregando no peito certa ternura e rememora a cena onírica que lhe colocou para dormir na noite anterior. O sonho parece que veio para preencher algumas lacunas do tempo de infância. No sonho houve o encontro. No sonho aconteceu o acerto de contas. Desperta e sente que tudo está mais claro. Então, decide compartilhar esse afeto bom que germinou no centro do coração e acalentou as memórias. Quem diria que apenas um "Oi, sonhei contigo e foi lindo" causaria tamanho efeito? Nossas escolhas são desdobramentos. Nenhuma ação termina nela mesma. Não controlamos as ondas que nossas decisões causam no rio do tempo. O sonho anunciava algo que ela não poderia imaginar. Não devia ter brincado de misturar o sonho e a realidade. Ou deveria? Enfim, abriu uma abertura no tempo. É possível quebrar o tempo? Para eles parece que sim. Agora brincam de romper com o tempo. Tudo se mistura. A menina e a mulher. O menino e o homem. A amizade e a paixão. Passado e presente. Estão suspensos no tempo. Entra a infância compartilhada e a adultez desconhecida. Se reconhecem, mas não se conhecem. Questiona-se: Será que de fato acordei daquele sonho? Foi um sonho ou uma promessa? Não se sabe. Por enquanto experimenta esse buraco que se abriu no tempo e enquanto revive o passado, sabe que o presente tem suas barreiras e o futuro é campo do mistério.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Compilado sobre o abraço

Teu abraço que tem gosto de berço.

Quando sinto teu abraço meu corpo reconhece: é aqui.

Nos teus braços por alguns segundos desapareço e, enfim me sinto inteira.

Quando abraço teu corpo meu peito pulsa e digo para mim mesma: Existo!

Abraço bom é aquele que nem aperta e nem folga. Ele tem a medida certo que nos deixa dentro sem estarmos presos.

O abraço quando sufoca significa que a sua presença não é notada. O outro abraça alguma coisa que não é tu. Na verdade, ele abraça uma falta. Tu és apenas meio de preenchimento.

O abraço quando é frouxo reflete que os braços que se enroscam têm medo. São inseguros e assustados. Abraço frouxo é receio de se perder naquele laço.

Abraço quando tem pressa é porquê não sabe ficar dentro.

Gosto do abraçar devagar. Abraçar devagar é diferente do abraço demorado. Abraço devagar é aquele que chega com calma e cada movimento é sentido. Passo a Passo. Mão a mão. braço a braço. Ombro a ombro. Peito a peito. O abraço vira encontro.

Abraço demorado é para poucos e para alguns momentos. Não dá pra habitar qualquer abraço que passa por nós.

Abraço é silêncio que diz tudo.
No meu céu há estrelas. Nessa vasta escuridão vejo pequenos pontos de luz. Uma simples gotícula ilumina todo o mar da noite. Existe esperança no céu que sou, pois vejo estrelas. E onde há estrelas o sonho prevalece. Aqui, no céu que sou, prezo as poucas luzes que brotam de minha escuridão.
O coração está pronto. Ele é espera. Esperança. Suspira. Aspira. Deseja. O coração aguarda.
Cadê você que não chega?

Queda de cabelo

Meus cabelos caem. Os fios espalham-se pela casa. Para onde olho existe um pedaço de mim caído. Parece que me desfaço a cada fio. Parece que estou indo embora. No fio que se rompe sinto a passagem do tempo. Olho para esse cabelo morto que invade minha casa e penso: tudo isso já fui eu e hoje não é mais. Noto que é possível ir se perdendo sem nem perceber. Que perigo!

Ás vezes gosto de brincar e imagino que esses fios, na verdade são linhas, e que posso costurar e criar belas peças. Já montei várias colchas com os retalhos de cabelo. Tem vezes que gosto da sensação de ver meus cabelos por aí, autonomamente. Tenho a sensação que é uma forma de deixar minha marca e de fazer-me presente em vários ambientes ao mesmo tempo. É como se estivesse marcando território: Sim, passei por aqui e aqui é meu.

Vou contar um segredo, de certa forma, sinto em alguns momentos certo prazer de ver meus cabelos velhos indo embora, pois gosto de pensar que estou mais leve e que aqueles fios já não me servem mais. De repente, renovada.

Em outros momentos, confesso que me despeço dos cabelos quando jogo-os fora. Porém, admito, prefiro jogá-los pela janela e vê-los partir, livres. Eles saem voando, alguns insistem em voltar e eu brigo com eles: Vão embora, oxe, chegou a hora de ir! E eles partem flutuando ao ritmo do vento. Por um breve momento sinto que também flutuo e respiro aliviada pela liberdade de poder ir sem amarras.

Enfim, casa.

Enfim me vejo casa. Minha casa reflete quem sou e quem sonho ser. Liberto-me entre essas paredes. Cada pedaço daqui tem uma parte minha. Adoro despejar música entre os cômodos e permitir-me balançar entre os móveis.A música colore a casa sem deixar marcas e constantemente trás uma nova versão para cada ambiente.

Deixo corredores em todos os cômodos para que minha passagem nesse lar nunca seja interrompida, apertada e dificultada. Já basta os entraves da vida. Aqui, em casa, transito com tranquilidade. Está aberto. Sou abertura. Que nada atrapalhe meu caminhar. O chão é livre e na minha casa ele acolhe. O chão é visto e admirado. Lugar de ser presença. Por toda casa dou valor ao chão que piso, que deito, sento e sou. Até o teto é reconhecido. Pois, quando chego ao chão, contemplo o teto e sinto que de alguma forma sou a unidade entre esses opostos.


A rede que embala segue o compasso do meu corpo. O sofá abraça. As plantas são respiros, pois me lembram de zelar, de cuidar, de nutrir e hidratar. As plantas demarcam vida para além de mim. A casa pulsa. 

Pouco a pouco preencho ela de arte. A arte que enfim me permiti expressar. Por quanto tempo calei minha criatividade? Por quanto tempo anulei minha sensibilidade. Na minha casa estou livre de julgamento. Nela posso falar, escrever, pintar, ouvir, ver, fazer, dançar o que for e como for. Minha criança se alegra. 



Devagar componho cada cantinho. Na cozinha realizo transformações. Verdadeiras alquimias. Desperta o desejo de descobrir novos temperos e sabores. Há muito o que aprender. O quarto ainda está em reforma. Aos poucos ele se mostra. Pouco a pouco consigo construir esse lugar de privacidade e acolhimento tão necessário.

Sim, enfim me vejo casa e finalmente sinto que estou morando nesse ser que sou.

sábado, 4 de julho de 2020

Mãe é nutrição.

Três meses sem ver minha mãe. Chega finalmente o dia do encontro. Anúncio dias antes meu desejo: "mame, faz aquele cozido?!". Ela não responde, mas seu sorriso orgulhoso denúncia que serei satisfeita. Mãe é nutrição. Nascemos e graças a ela que sobrevivemos, pois somos alimentados do e em seu corpo. Chego em sua casa e sou recebida pelo cheiro, pelos olhos curiosos, e por nosso desajeitamento que a distância do isolamento social nos proporcionou, além de outras distâncias que a história delimita sem que possamos nos dar conta. Preparo o pirão, pois essa é minha tarefa. Filho(a) também é nutrição. Nós, enquanto filhos, precisamos despertar a fome de nossos pais, em especial a nossa mãe. A mãe precisa desejar devorar o(a) filho(a), para que assim, possamos nos sentir imensamente desejados. A mãe se nutre da cria, assim como a cria se alimenta no materno.

Colocamos os pratos na mesa. A fome cresce. A cada garfada sobrevôo em lembranças. Aquela comida me traz de volta para o nosso laço. Eu como nosso vínculo. Sinto-me casa. Ali existe amor. O amor mais puro e primitivo. O amor de se deixar alimentar pelo outro. A comida de minha mãe é a potência de minha infância e o que me situa na vida adulta. Sentada em sua mesa brinco com o tempo, sinto que subverto sua ordem, pois ali, não há lógica, eu sou puro agora e encarno o passado e o presente. O futuro não se encaixa nesse instante. Pois, aprendi que o futuro não existe. Ah, minha mãe, sua comida me é fonte de crescimento e afeto. Eu sinto seu carinho naquela saladinha de batata doce, percebo a dedicação no bobó de camarão, prato simples, mas que exige esforço no descascar. Recebo alegremente a surpresa inesperada daquela sharque de côco e um imenso abraço quando retira do forno a travessa de lasanha que enche a boca da água e o peito de encantamento.

Recordo-me com tristeza quando pedi ao meu padrasto que me passasse aquela receita do seu caranguejo e recebi um não. 3 meses depois ele faleceu. Fico pensando: se ele soubesse de sua morte, será que ele me daria aquela receita? Ele não entendeu que o lhe pedia era nutrição. Eu lhe pedia que me alimentasse. Pedi que me desse algo seu para que pudesse guardar e fazer de meu. Meu padrasto tinha medo de dar e ficar sem nada. Os pais precisam acreditar que irão nutrir os seus filhos e não perderão suas forças com isso, pelo contrário, sentirão que no dar também recebem. Caso contrário, não conseguirão bem nutrir seus pequenos. Meu padrasto morreu e levou consigo aquela receita. Até hoje, quando vejo caranguejo penso: Puts! Jamais comerei novamente aquele caranguejo. Fica o vazio. Na verdade já havia. Sua negativa só mostra o quanto era difícil haver troca naquela relação. Tudo bem, de certa forma, ele se fez eternamente presente nessa ausência. Minha mãe, passou-me todas as receitas das comidas que lhe pedi. Pois é, ela quando me dá, sente que também recebe. Aprendo com seu ato. Minha mãe não tem medo de ser devorada. Amém!

Eu sei. Sei que quando chegar a verdadeira despedida não poderei mais provar de seu tempero, mesmo que tenha anotado todas as receitas. Eu sei. Mas veja só, será que não é isso que significa a herança? Algo que nós recebemos de nossos pais e enfim, tornamo-no nosso. Quando cozinhar suas receitas estarei unindo ela a mim. Será um encontro. Estarei ali provocando uma mistura entre o que é dela e o que é meu. Pois a herança de nossos pais só faz sentido quando a transformamos em nossa. Enquanto ela continuar sendo de nossos pais, sentiremo-nos desautorizados e submissos. Por isso digo, as receitas de minha mãe, quando chegar o momento de fazê-las também serão minhas, e assim, afirmo nosso eterno laço.

Mãe é nutrição. Mesmo que não mais beba de teu seio o líquido que me fez vida, sigo o caminho de volta à sua casa e espero seu feijão, sua galinha guisada e aquele arroz soltinho. No básico também se vive o amor. Nosso reencontro foi suave. Devoramos o cozido. Você reclamando do sal enquanto eu estava perdida naquele sabor e ato de ternura. Nesse dia não jantei. Misericórdia, como comi! Estava plenamente satisfeita. Conversamos, participei de sua rotina, aconcheguei-me no cheirinho dos seus lençóis e sonhei com o almoço do outro dia. Você havia prometido o bobó de camarão. Ah! Que chegue logo o outro dia e que eu possa mais uma vez me nutrir em você, mainha Te amo!

O céu que arde na terra.

Celeste nasceu em noite estrelada. Filha única de um casal maduro que já havia perdido a esperança de procriar. Celeste nasce como um milagr...