quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Não há como retomar o que a terra levou: Fullmetal alchemist e o trabalho de luto.


Ano passado fui apresentada por um amigo ao anime Fullmetal alchemist. Com 51 episódios foi uma adaptação da série de mangá escrita e ilustrada por Hiromu Arakawa, (para maiores informações sobre o anime pode-se começar por aqui: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fullmetal_Alchemist). Sem dúvidas fiquei impressionada e muito tocada pelo enredo do desenho e desde que acabei penso em produzir algo que fale da história dos irmãos Elric. Assim, pretendo falar um pouco sobre as impressões que tive ao longo da trama e tomarei cuidado para não expor tanto o anime àqueles que não o viram. Recomendo a todos que assistam, mesmo que se achem adultos demais para desenhos animados, ficarão surpresos com o conteúdo e as reflexões dessa obra.

O anime conta a história dos irmãos Edwrad Elric e Alphonse Elric, os dois jovens são praticantes da arte/ciência alquimia. "A alquimia é uma ciência na qual se compreende a estrutura da matéria para que se possa, então, quebrá-la e reconstrui-la. No entanto, por se tratar de uma ciência, a alquimia também é regida pelas leis da natureza: cria-se algo com determinada massa apenas a partir de outro objeto com massa semelhante (princípio da troca equivalente), utilizando-se, para isto, de um círculo de transmutação. Não se pode criar algo do nada, é preciso que alguma outra coisa seja sacrificada neste processo" (http://animalog.com.br/site/full-metal-alchemist-todos-os-episodios.html). Existem algumas regras também para o uso da alquimia, uma delas é a proibição da transmutação humana, que basicamente seria a criação de um corpo humano para poder ressuscitar alguém.

A problemática do anime começa quando os irmãos inconformados com a morte da mãe tentam trazê-la de volta a vida através da alquima. Algo errado acontece e eles sofrem fortes consequências por essa tentativa. Esse fracasso muda as suas vidas e a partir disso entram numa busca desenfreada para reaver o que perderam. A lei da equivalência rege o princípio da troca equivalente e ela exige que para se criar algo é preciso de outra coisa do mesmo valor. O que seria necessário então para trazer de volta a vida uma pessoa amada? Parece não haver resposta para tal e talvez a única saída seja encontrar algo que ultrapasse essa lei, e eis que surge a pedra filosofal que permite a realização da alquimia sem a submissão à lei da equivalência. Os jovens irmãos, então, saem em viagem a procura dessa alternativa. 


Vemos nos episódios que se seguem as consequências dessa primeira situação e como os irmãos Elric sofrem por terem perdido a mãe, mas principalmente por terem tentado reverter algo impossível. A morte é a única certeza que o homem possui e o quanto nos assusta e dói essa verdade. Para aqueles que ficam resta apenas o luto. O trabalho de luto pertence a natureza humana e não se restringe apenas à morte, estamos o tempo todo em trabalho de luto. Comte-Sponville afirma que há luto sempre que há perda, recusa e frustração. É inegável que a tentativa de ressuscitar a mãe foi fruto da recusa de aceitar a perda e o quando é frustrante se ver com 11 e 10 anos de idade órfãos. O autor continua e diz que o luto marca a insatisfação por sermos contrariados pela realidade que nos machuca tanto quanto estejamos apegados à aquilo que nos é retirado. Através da morte encaramos que somos humanos e não deuses. Triste é esquecermos disso e passarmos a viver a vida com a ilusão de que ela não terá um fim. O luto nos coloca em contato com a nossa condição de mortal. Os irmãos Elric aprenderam essa lição do jeito mais duro. Ao tentar driblar a morte desencadearam uma série de consequências inacreditáveis que o levaram a amadurecer e a lidar com um sofrimento imenso.


Freud dizia, "Não sabemos renunciar a nada". Edward e Alphonse não souberam passar pela morte materna. Tudo passa e tudo passará, inclusive nós, inclusive as pessoas que nós mais amamos. Compreender essa questão não é desistir da vida ou enfraquecer-se nela, muito menos é trair a pessoa amada. Pensar na vida é pensar na morte. A morte trata da vida, "Na verdade, a Morte nunca fala sobre si mesma. Ela sempre nos fala sobre aquilo que estamos fazendo com a própria Vida, as perdas, os sonhos que não sonhamos, os riscos que não tomamos (por medo), os suicídios lentos que perpetramos" (Rubem Alves). Ao compreender essa questão podemos viver com mais carinho, mais sabedoria, e poder amar às pessoas sem querer possuí-las. A morte só irá tomar aquilo que quisermos possuir. O luto por mais difícil que seja nos ensina que a vida, a nossa vida continua. A realidade prevalece e mostra o quanto somos transitórios, mas enquanto há vida, há possibilidade. É preciso continuar, mais do quê isso, é inevitável continuar. Os irmãos Elric perceberam que tentar reaver o passado é cair no vazio e não há solução para morte.


Outra lição muito importante que aprendi com o anime foi a questão da lei da equivalência e o quanto ela só serve para a alquimia. Essa lei é central durante o anime e vemos Edward se debater e esforçar-se para viver segundo esse princípio. Ele acredita que a lei da natureza humana é tal qual guiada pelo princípio da troca equivalente. E se questiona, "O que obteve em igual valor diante das dificuldades da sua vida?". A grande questão que descobri no finalzinho do anime e acredito que Edward tenha compreendido também foi que na vida não existe isso de troca equivalente. Revoltados pelas perdas e injustiças gritamos para o mundo "NÃO É JUSTO!", mas a vida não se trata de justiça. O real não se preocupa em ser justo. Ele é o que é, e nós não podemos exigir nada dele, pois ele não nos deve nada. Ao ver o anime e ficar também me perguntando "Cadê a contrapartida? O que eles estão recebendo em troca de tudo isso?" vi o quanto ainda tenho a ilusão de que o mundo me deve algo, de que minhas ações serão retribuídas em igual intensidade. Dar-se conta disso não é fraqueza e vejo isso refletido na história dos jovens alquimistas.


A música Bratja (Brothers), feita especialmente para o anime estabelece um diálogo entre os irmãos simplesmente emocionante. Em um pedaço da música o irmão mais velho, Edward, pede perdão para o caçula, Alphonse, pois sente-se culpado diante de tudo e pede resposta para aquele que conhece a lei da existência, pois aprendeu que não há remédio para a morte. Penso que a própria vida é quem pode dar às respostas sobre a morte e estas estão ligadas ao trabalho de luto. Em outro momento da música eles se questionam se devem esquecer tudo o que aconteceu e continuar a viver assim, na condição em que eles se encontram. A vida parece insuportável para àqueles que sobrevivem a morte de um ente querido. A dor invade todos os espaço da vida do sujeito e parece ser impossível voltar a ser alegre novamente. Edward e Alphonse estão em condições extremas, mas o quanto fica claro no anime a impossibilidade de reaver as coisas do jeito que já foram um dia. A vida nos força a caminhar para a frente, e é algo que eles precisarão aprender. E que eles consigam prosseguir ...



A música Bratja:


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