Celeste nasceu em noite estrelada. Filha única de um casal maduro que já havia perdido a esperança de procriar. Celeste nasce como um milagre que anuncia boas novas para aqueles que foram abençoados por suas graças. Seus pais a criaram como se ela pudesse desaparecer a qualquer vacilo. Eles temiam perdê-la, já que sua chegada foi repentina, pensavam que a partida estava a espreita. Assim, Celeste, foi rodeada de cuidados e limites. Não lhe permitiam esforços, pois acreditavam que sua energia podia se dissipar. Por ser vista como um milagre também havia pretensão de torná-la divina. Celeste ganha ares de santa. Sua infância foi comedida, sua adolescência reprimida e a vida adulta lhe atinge sem grandes demandas. Celeste chega a adultez insossa. Cresce como sagrada. E sem outra referência, vê-se como alguém que vive para os céus. Alias, seu nome vem daí. Celeste não se entregaria à terra, e sim estaria em outro patamar. Sua vida é devotada a ser digna dos céus. Rejeita tudo aquilo que relatam e descrevem sob o título de profano. Seu corpo e sua alma eram puros e castos.
Porém, a vida acontece no chão, na poeira, no corpo instinto e não no céu. Bicho humano é animal terrestre, por mais que sua imaginação lhe permita delirar outras condições. E Celeste não era anjo. Era mulher humana e terrena. Um belo dia, despretensiosamente, Celeste experimentou um prato que continha certa dose de pimenta. Ao saborear a especiaria sentiu algo que nunca vivera. Seu corpo esquentou. Era um calor diferente do que experimentará com o sol em dias quentes e seco. Esse calor lhe tomava por dentro. Ardia em sua boca e lhe trazia sabor. Sua língua queimava e descia por sua garganta um quente macio. Sua face ficou rubra. Seus olhos arregalaram e só havia em si uma quentura saborosa que lhe soltava suspiros. Sentiu o calor invadir sua alma e seu corpo despertar. Seu corpo finalmente acordou.
Celeste ficará curiosa. Passou a experimentar outros pratos e sabores e neles sempre acrescentava alguma pimenta. Era revigorante. Em tudo que comia acrescentava doses de pimenta. No ovo cozido e assado. Na torrada e no sanduíche. No feijão, no molho de macarrão, na carne cozida, no frango frito, na salada, na sopa, na canja de galinha, na geleia, no chocolate... Em tudo busca o ardor da pimenta. Decidiu manter em segredo seus calores. Temia ser repreendida. Celeste havia se acostumado a ser vista como santa e não suportaria o contrário. Ser santa era tudo o que sabia sobre si. Sem ser santa não saberia o que ser. A pimenta ameaçava sua santidade, pois lhe acordava para sua realidade carnal. Tornava-a humana. Finalmente Celeste se sentia mulher e não mais santa, já que seu corpo era quente. Podia sentir. Podia desejar. Assim, prometeu jamais abandonar suas quenturas. E diariamente temperava seus pratos com uma farta dose da pecaminosa especiaria. Desde então Celeste queima a língua e lagrimeja os olhos como um alívio.