sábado, 29 de maio de 2021

O céu que arde na terra.

Celeste nasceu em noite estrelada. Filha única de um casal maduro que já havia perdido a esperança de procriar. Celeste nasce como um milagre que anuncia boas novas para aqueles que foram abençoados por suas graças. Seus pais a criaram como se ela pudesse desaparecer a qualquer vacilo. Eles temiam perdê-la, já que sua chegada foi repentina, pensavam que a partida estava a espreita. Assim, Celeste, foi rodeada de cuidados e limites. Não lhe permitiam esforços, pois acreditavam que sua energia podia se dissipar. Por ser vista como um milagre também havia pretensão de torná-la divina. Celeste ganha ares de santa. Sua infância foi comedida, sua adolescência reprimida e a vida adulta lhe atinge sem grandes demandas. Celeste chega a adultez insossa. Cresce como sagrada. E sem outra referência, vê-se como alguém que vive para os céus. Alias, seu nome vem daí. Celeste não se entregaria à terra, e sim estaria em outro patamar. Sua vida é devotada a ser digna dos céus. Rejeita tudo aquilo que relatam e descrevem sob o título de profano. Seu corpo e sua alma eram puros e castos. 

Porém, a vida acontece no chão, na poeira, no corpo instinto e não no céu. Bicho humano é animal terrestre, por mais que sua imaginação lhe permita delirar outras condições. E Celeste não era anjo. Era mulher humana e terrena. Um belo dia, despretensiosamente, Celeste experimentou um prato que continha certa dose de pimenta. Ao saborear a especiaria sentiu algo que nunca vivera. Seu corpo esquentou. Era um calor diferente do que experimentará com o sol em dias quentes e seco. Esse calor lhe tomava por dentro. Ardia em sua boca e lhe trazia sabor. Sua língua queimava e descia por sua garganta um quente macio. Sua face ficou rubra. Seus olhos arregalaram e só havia em si uma quentura saborosa que lhe soltava suspiros. Sentiu o calor invadir sua alma e seu corpo despertar. Seu corpo finalmente acordou.

Celeste ficará curiosa. Passou a experimentar outros pratos e sabores e neles sempre acrescentava alguma pimenta. Era revigorante. Em tudo que comia acrescentava doses de pimenta. No ovo cozido e assado. Na torrada e no sanduíche. No feijão, no molho de macarrão, na carne cozida, no frango frito, na salada, na sopa, na canja de galinha, na geleia, no chocolate... Em tudo busca o ardor da pimenta. Decidiu manter em segredo seus calores. Temia ser repreendida. Celeste havia se acostumado a ser vista como santa e não suportaria o contrário. Ser santa era tudo o que sabia sobre si. Sem ser santa não saberia o que ser. A pimenta ameaçava sua santidade, pois lhe acordava para sua realidade carnal. Tornava-a humana. Finalmente Celeste se sentia mulher e não mais santa, já que seu corpo era quente. Podia sentir. Podia desejar. Assim, prometeu jamais abandonar suas quenturas. E diariamente temperava seus pratos com uma farta dose da pecaminosa especiaria. Desde então Celeste queima a língua e lagrimeja os olhos como um alívio.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Não se brinca com sonhos.

No meio do caminho havia um sonho. Havia um sonho no meio do caminho. Acorda pela manhã carregando no peito certa ternura e rememora a cena onírica que lhe colocou para dormir na noite anterior. O sonho parece que veio para preencher algumas lacunas do tempo de infância. No sonho houve o encontro. No sonho aconteceu o acerto de contas. Desperta e sente que tudo está mais claro. Então, decide compartilhar esse afeto bom que germinou no centro do coração e acalentou as memórias. Quem diria que apenas um "Oi, sonhei contigo e foi lindo" causaria tamanho efeito? Nossas escolhas são desdobramentos. Nenhuma ação termina nela mesma. Não controlamos as ondas que nossas decisões causam no rio do tempo. O sonho anunciava algo que ela não poderia imaginar. Não devia ter brincado de misturar o sonho e a realidade. Ou deveria? Enfim, abriu uma abertura no tempo. É possível quebrar o tempo? Para eles parece que sim. Agora brincam de romper com o tempo. Tudo se mistura. A menina e a mulher. O menino e o homem. A amizade e a paixão. Passado e presente. Estão suspensos no tempo. Entra a infância compartilhada e a adultez desconhecida. Se reconhecem, mas não se conhecem. Questiona-se: Será que de fato acordei daquele sonho? Foi um sonho ou uma promessa? Não se sabe. Por enquanto experimenta esse buraco que se abriu no tempo e enquanto revive o passado, sabe que o presente tem suas barreiras e o futuro é campo do mistério.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Compilado sobre o abraço

Teu abraço que tem gosto de berço.

Quando sinto teu abraço meu corpo reconhece: é aqui.

Nos teus braços por alguns segundos desapareço e, enfim me sinto inteira.

Quando abraço teu corpo meu peito pulsa e digo para mim mesma: Existo!

Abraço bom é aquele que nem aperta e nem folga. Ele tem a medida certo que nos deixa dentro sem estarmos presos.

O abraço quando sufoca significa que a sua presença não é notada. O outro abraça alguma coisa que não é tu. Na verdade, ele abraça uma falta. Tu és apenas meio de preenchimento.

O abraço quando é frouxo reflete que os braços que se enroscam têm medo. São inseguros e assustados. Abraço frouxo é receio de se perder naquele laço.

Abraço quando tem pressa é porquê não sabe ficar dentro.

Gosto do abraçar devagar. Abraçar devagar é diferente do abraço demorado. Abraço devagar é aquele que chega com calma e cada movimento é sentido. Passo a Passo. Mão a mão. braço a braço. Ombro a ombro. Peito a peito. O abraço vira encontro.

Abraço demorado é para poucos e para alguns momentos. Não dá pra habitar qualquer abraço que passa por nós.

Abraço é silêncio que diz tudo.
No meu céu há estrelas. Nessa vasta escuridão vejo pequenos pontos de luz. Uma simples gotícula ilumina todo o mar da noite. Existe esperança no céu que sou, pois vejo estrelas. E onde há estrelas o sonho prevalece. Aqui, no céu que sou, prezo as poucas luzes que brotam de minha escuridão.
O coração está pronto. Ele é espera. Esperança. Suspira. Aspira. Deseja. O coração aguarda.
Cadê você que não chega?

Queda de cabelo

Meus cabelos caem. Os fios espalham-se pela casa. Para onde olho existe um pedaço de mim caído. Parece que me desfaço a cada fio. Parece que estou indo embora. No fio que se rompe sinto a passagem do tempo. Olho para esse cabelo morto que invade minha casa e penso: tudo isso já fui eu e hoje não é mais. Noto que é possível ir se perdendo sem nem perceber. Que perigo!

Ás vezes gosto de brincar e imagino que esses fios, na verdade são linhas, e que posso costurar e criar belas peças. Já montei várias colchas com os retalhos de cabelo. Tem vezes que gosto da sensação de ver meus cabelos por aí, autonomamente. Tenho a sensação que é uma forma de deixar minha marca e de fazer-me presente em vários ambientes ao mesmo tempo. É como se estivesse marcando território: Sim, passei por aqui e aqui é meu.

Vou contar um segredo, de certa forma, sinto em alguns momentos certo prazer de ver meus cabelos velhos indo embora, pois gosto de pensar que estou mais leve e que aqueles fios já não me servem mais. De repente, renovada.

Em outros momentos, confesso que me despeço dos cabelos quando jogo-os fora. Porém, admito, prefiro jogá-los pela janela e vê-los partir, livres. Eles saem voando, alguns insistem em voltar e eu brigo com eles: Vão embora, oxe, chegou a hora de ir! E eles partem flutuando ao ritmo do vento. Por um breve momento sinto que também flutuo e respiro aliviada pela liberdade de poder ir sem amarras.

Enfim, casa.

Enfim me vejo casa. Minha casa reflete quem sou e quem sonho ser. Liberto-me entre essas paredes. Cada pedaço daqui tem uma parte minha. Adoro despejar música entre os cômodos e permitir-me balançar entre os móveis.A música colore a casa sem deixar marcas e constantemente trás uma nova versão para cada ambiente.

Deixo corredores em todos os cômodos para que minha passagem nesse lar nunca seja interrompida, apertada e dificultada. Já basta os entraves da vida. Aqui, em casa, transito com tranquilidade. Está aberto. Sou abertura. Que nada atrapalhe meu caminhar. O chão é livre e na minha casa ele acolhe. O chão é visto e admirado. Lugar de ser presença. Por toda casa dou valor ao chão que piso, que deito, sento e sou. Até o teto é reconhecido. Pois, quando chego ao chão, contemplo o teto e sinto que de alguma forma sou a unidade entre esses opostos.


A rede que embala segue o compasso do meu corpo. O sofá abraça. As plantas são respiros, pois me lembram de zelar, de cuidar, de nutrir e hidratar. As plantas demarcam vida para além de mim. A casa pulsa. 

Pouco a pouco preencho ela de arte. A arte que enfim me permiti expressar. Por quanto tempo calei minha criatividade? Por quanto tempo anulei minha sensibilidade. Na minha casa estou livre de julgamento. Nela posso falar, escrever, pintar, ouvir, ver, fazer, dançar o que for e como for. Minha criança se alegra. 



Devagar componho cada cantinho. Na cozinha realizo transformações. Verdadeiras alquimias. Desperta o desejo de descobrir novos temperos e sabores. Há muito o que aprender. O quarto ainda está em reforma. Aos poucos ele se mostra. Pouco a pouco consigo construir esse lugar de privacidade e acolhimento tão necessário.

Sim, enfim me vejo casa e finalmente sinto que estou morando nesse ser que sou.

O céu que arde na terra.

Celeste nasceu em noite estrelada. Filha única de um casal maduro que já havia perdido a esperança de procriar. Celeste nasce como um milagr...