Quando era pequena chupava dedo. Alias, dedos! Os escolhidos foram o fura bolo e o maior de todos, e os experimentava sempre que ia dormir e/ou assistir televisão. Chupei dedo até os 4-5 anos. Lembro como parei de desfrutar dos meus dedinhos. Meu padrasto não concordava muito com essa minha atividade e nem minha mãe, porém ela, no fim das contas, não se importava tanto. Eles começaram a falar das desvantagens de chupar dedo para mim: "Andreza, você vai ficar com os dedos murchos! Andreza, deixe de chupar dedo, você já é velha. Andreza, pare de fazer isso que a sua boca já está ficando feia, está enorme. Vixe, olha como tá a boca dessa menina..." Eu ouvia tudo. Até que, de certa forma, via lógica nos argumentos deles, mas preferia meus dedinhos. Foi quando, meu padrasto, já tendo me alertado várias vezes, decidiu cumprir a ameaça. Quando dormi, ele colocou pimenta nos meus dedos, e deixou ali, a espera da minha procura por eles. Bom... Dá pra imaginar o resto da história né? Foi uma experiência bem ruim e como havia a promessa daquilo ser repetido, decidi que não queria mais correr o risco de sentir aquele sabor horrível e desisti de chupar dedo(s).
O elogio mais bonito que já recebi em toda a minha vida foi quando tinha 14 anos. Era oitava série. Até hoje lembro desse momento e me sinto acariciada. Enquanto fazia uma tarefa distraída ouvi um colega de turma dizer impressionado e encantado: "Caramba, bicho! Posso dizer pra ela?". De repente, ele me chama: "Andreza, poxa, tu num sabe o que Josué disse de tu. Eu achei incrível." Eu, um pouco insegura e imensamente curiosa, pedi que ele me contasse. Foi quando, rabico (apelido do sujeito) disse: Josué falou assim 'o que eu acho mais bonito em Andreza não são os olhos dela, mas o olhar. A forma dela olhar pras coisas. O olhar dela diz muita coisa. E eu acho lindo isso.' Nossa! Eu fiquei em êxtase. Até hoje sou muito grata por esse elogio.
A grande questão é que nenhuma experiência na nossa vida passa despercebida (mesmo que a gente não se lembre) e não saímos ilesos na nossa história. Passei a minha infância e adolescência com vergonha de minha boca. Achava ela feia, grande, carnuda demais, afinal de contas, foi assim que ela me foi espelhada. Foi assim que a minha boca me foi traduzida no momento que eu ainda não tinha possibilidades de traduzir por mim mesma as imagens do meu corpo. A criança, inicialmente, configura sua autopercepção por meio da percepção que os adultos de referência têm dela (os cuidadores - Pai/mãe). Já, a minha relação com os meus olhos, é maravilhosa. Meu irmão, quando eramos pequenos (mais eu do que ele), dizia: "Poxa, queria ter olhos claros que nem o de mainha e o da maga (eu)" Meus olhos são pontos de identificação com a minha mãe. Nós temos os olhos parecidos. Sempre os achei lindos e fico agraciada quando alguém retribui e confirma a minha impressão sobre eles. Até hoje, confesso, que os percebo como meu trunfo, minhas estratégias de conquista e atração. Hoje, mulher e adulta, começo a criar uma outra relação com a minha boca e admito que até acho ela bonita. Hoje, mulher e adulta, venho construindo (ou será descobrindo) outra imagem sobre meu corpo (ou seria imagens?). Começo a perceber um novo corpo que é diferente daquele da infância, daquele da adolescência e daquele que me discursaram. Minha boca é grande e cabe um sorriso enorme. Fico feliz, hoje, em tê-la.
A nossa imagem corporal perpassa por essa finas teias que se enlaçam durante a nossa história. Não culpo minha mãe e meu padrasto. Eles fizeram o melhor que puderam naquela época para me convencer a parar de chupar dedo. Era importante e necessário para o meu desenvolvimento aceitar me despedir desse hábito. Os pais se esforçam (alguns mais, outros menos) para formar (ou deformar) uma imagem que revele bem (bem pra quem e para o quê?) seus filhos. Eles não podem e não conseguirão controlar seus discursos e suas impressões. Os filhos, quando ouvem palavras demais das figuras paternas, se ligam nos silêncios. Aqueles que possuem silêncios em demasia, agarram-se às frases soltas e raras dos pais. Ou seja, não dá pra impedir linhas soltas. O que dá pra fazer é cuidar do que for se desarrumando.
Dias atrás, li algo em Winnicott que me emocionou bastante. Ele diz que o que revela para o bebê - criança - humano o fato dele ser amado é a imperfeição dos pais - cuidadores - figuras de amor, e o quanto esses se ESFORÇAM/ESFORÇARAM para restaurar seus erros. Não é A PERFEIÇÃO dos pais que nos fala sobre o quanto somos amados, mas sim, o quanto eles tentam/tentaram reparar um erro. CASSETE! Isso faz tanto sentido.
Outra grande sacada é que na nossa história, o tempo passa, os espaços mudam e os discursos se renovam. Eu não tenho mais o mesmo corpo que tive na infância e muito menos a imagem que tinha sobre ele. A minha vida seguiu e tive tantas experiências e tantos outros discursos que pude aprender diversas versões possíveis sobre mim mesma. E, o principal, é que, pouco a pouco, estou descobrindo, aceitando e fortalecendo os meus discursos e minhas impressões sobre mim. Não estamos estagnados. Nunca! Nem quando pensamos que estamos, pois a vida sempre segue em frente, mesmo quando a gente não acompanha, ela segue e nos arrasta.
Andreza Crispim
Psicóloga CRP 02/17314
Psicomotricista Relacional
@psicoterapiafalemais
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