Um dos pontos mais debatidos na psicologia atualmente é a tecnização dos profissionais da área. Discute-se o quanto a utilização de recursos técnicos pode ser favorável ou desfavorável ao processo. Já refleti, em outro momento, aqui no blog sobre esse assunto (Link - http://andrezacrispim.blogspot.com.br/2012/08/fora-de-visao-enxergar-alem-do-que-os.html), agora, quero pensá-lo através da poesia de Manoel de Barros e da teoria da Gestalt-terapia.
Para começar quero utilizar a seguinte frase de Manoel: "Tudo que não invento é falso". A Gestalt-terapia prioriza no encontro terapêutico a relação que surge entre psicoterapeuta e cliente, mas muito mais do quê isso, ela discute a essencialidade do humano voltar-se para o aqui e agora, afirmando que não há outra possibilidade de existência fora desse espaço e tempo. O homem deve deixar guiar-se por aquilo que a situação lhe desperta, minimizando preconceitos enrijecidos e descontextualizados. Deixar-se guiar pela situação é permitir a espontaneidade de sua própria ação e de seu modo de perceber as coisas e a si mesmo. É procurar estabelecer um acordo entre suas necessidades internas e as exigências externas. O sujeito precisa inventar a sua própria atitude para que ela seja criação genuína de seu ser e não apenas reproduzir conceitos ditos como mais coerentes que não emanaram de uma inquietação singular. A invenção não exige que seja algo nunca visto, mas que seja produto criativo do próprio indivíduo para si mesmo. "Tudo que não invento é falso", pois não surgiu de um movimento pessoal para a tentativa de compreender ou lidar com algo.
"Todo conhecimento teórico em psicoterapia só tem sentido se usado a serviço do cliente." (Pinto, Ênio Brito, p. 70). O psicoterapeuta precisa estar em pleno contato com a expressão e modo de ser singular de seu cliente para utilizar ferramentas que sejam úteis a esse. Para isso, criará dentro do contexto relacional e situacional do encontro terapêutico meios de intervenções que estejam interligados aos preceitos teóricos e à particularidade do cliente. A técnica não pode ser utilizada com algo inflexível e enxertado na relação, pois dessa forma o terapeuta perde de vista o que há de mais importante, que é a unicidade do ser e o modo como percebe o sujeito. Lembro das aulas sobre técnicas e dinâmicas de grupo que os professores sempre repetiam e nos pediam para lê-las e tentar dar um novo tom a elas, que jamais as usássemos como estavam no livro puramente. Para que a técnica corresse bem era necessário dá um toque pessoal que fosse condizente com as nossas condições de manejo e a situação a ser empregada. Os professores nos pediam para sermos inventores, para sermos criativos.
"Invento para me conhecer", outra poesia de Manoel que recorro para falar do quanto para nós psicólogos é importante reconhecer o seu modo particular de intervir e trabalhar. Para sermos bons profissionais não precisamos ser Freud ou Jung, muito menos Perls ou Rogers, basta ser apenas nós mesmos. Eu sei que isso não é fácil, mas é o que é. Assim, "Um processo terapêutico começa pela possibilidade de que o terapeuta interaja com seu cliente e valorize a pessoa singular que ele é, com sua história singular, com seu momento singular, com suas dores singulares." (Pinto, Ênio Brito, p. 70) e que se reconheça da mesma forma.
Ressalto aqui que é fundamental o estudo e o conhecimento sobre as teorias psicológicas e as técnicas que compõe nossa ciência. Recordo que li em algum lugar (não lembro onde) que o estudo teórico surgia para ficarmos mais inocentes na escuta do cliente. Isso quer dizer que quanto mais eu domino a teoria, mais amplio o meu campo de compreensão. Torno-me mais suscetível à experiência do próximo. No entanto, esse conhecimento não pode estar no foco da relação. Ele precisa transformar-se em tecido, órgão, sangue. Não pode ser mero acúmulo, na verdade é necessário que todo conhecimento seja transformado em nada, para que se crie espaço de criação e novidade. Como diria o poeta, "Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.". Também nas palavras dele,
"O que não sei fazer desmancho em frases.
Eu fiz o nada aparecer.
(Represente que o homem é um poço escuro.
Aqui de cima não se vê nada.
Mas, quando se chega ao fundo do poço já se pode ver o nada.)
Perder o nada é um empobrecimento."
Penso aqui em uma poesia de Manoel que pode demonstrar um pouco como o instrumental técnico pode desfavorecer o processo se for mal utilizado:
"O rio que fazia uma volta atrás da nossa casa era a imagem de um vidro mole.
Passou um homem e disse: Essa volta que o rio faz se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem."
Nesse ponto reflito no cuidado que necessitamos ter para não empobrecer a experiência pessoal do cliente quando os engessamos em teorias e técnicas. Cada cliente percebe o rio que cobre a sua casa de uma forma e nós precisamos compreendê-los, independente da nossa forma de perceber esse rio. Eu, por exemplo, não tenho rio algum rodeando a minha casa, na verdade, moro em apartamento.
Foto: https://www.facebook.com/jonasaraujofotografia?fref=ts
- Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições (Manoel de Barros).
* Ênio Brito Pinto. Psicoterapia de curta duração na abordagem gestáltica.
Manoel de Barros. Poesia Completa.
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