O sentimento de ira ou raiva faz parte daqueles que são renegados pela nossa cultura. Sentir raiva é "feio", é apontado como sinal de descontrole e, as vezes, compreendido como falta de capacidade para lidar com as situações desagradáveis. Além disso, tal sentimento está ligado a agressividade e esta não é bem vista no meio social.
Como já tratei anteriormente nossos sentimentos nos ajudam a compreender
o que se passa em nós. "Os sentimentos são a maneira como nos
percebemos. São a nossa reação ao mundo que nos circunda." (VISCOTT,
David. 1982, p.17). Através da percepção do que sentimos compreendemos o
modo como estamos nos colocando no mundo e os efeitos que o mesmo tem
sobre nós. "Aquilo que sentimos a respeito de qualquer coisa reflete a
nossa história e desenvolvimento, nossas influências passadas, nossa
agitação presente e nosso potencial futuro." (VISCOTT, David. 1982,
p.17). Para termos uma real consciência de quem somos e de como estamos
levando a nossa vida precisamos ter acesso ao que sentimos e vivenciar
os afetos aceitando-os e não os negligenciando.
Nossa cultura valoriza o pensamento, o raciocínio e afasta do seu
cotidiano os sentimentos. Esses são percebidos como falhos e que não
correspondem à um estilo de vida civilizado. O pensamento, atualmente,
surge para calar a emoção. As consequências desse posicionamento são
pessoas que não percebem sobre si, não se conhecem e que negam quem são para tentar ser aquilo que deveriam ser. Estamos
vivemos em uma sociedade onde os indivíduos deixam de seguir suas
próprias motivações para se orientar por modelos predeterminados.
Acredito que uma das formas de reencontrar o seu próprio desejo e de
descobrir seu verdadeiro eu é aceitar e compreender seus sentimentos.
Por isso, pretendo falar da raiva como algo inevitável e que faz parte
da natureza humana para reintegrá-lo a personalidade do sujeito.
Foto: Tommy Ingberg
Refletindo sobre a ira e o que ela representa lembro da falta e como ela assombra a nós, seres humanos. Nos depararmos com a frustração é doloroso e sentimentos de cunho negativos nascem daí. A raiva surge quando enfrentamos a falta, a falta que o limite nos obriga a lidar. A raiva nos aponta os limites e as nossas limitações. Quando nossos desejos não podem ser satisfeitos sentimos raiva. A ira revela o conflito entre aquilo que queremos e aquilo que podemos realizar.
Nascemos com o desejo de dominar o mundo. Somos livres para desejarmos, contudo o mundo nos responde que não pode e não quer ser dominado. Nesses instante percebemos que nem tudo é e será como queremos. O limite é colocado a nossa frente e necessitaremos lidar com ele. No entanto, o que a raiva revela para o sujeito quando se depara com o limite? Ele se reencontra com seu próprio desejo. Ao sentir raiva ele reafirma sua vontade, apesar de não poder ou não estar conseguindo satisfazê-la no momento. A ira é uma afirmação de si mesmo. Nos faz lembrar que temos desejos e queremos ser satisfeitos. Não sentir raiva é não ter desejo. É não querer com afinco. É não estar motivado e interessado em algo. Raiva é um apoderar-se de suas vontades e valorização de si mesmo. Com o tempo aprendemos a driblar os obstáculos que surgem diante de nós, ou contornamos certas situações e até mesmo aceitamos, ultrapassamos e seguimos em frente. A raiva nos possibilita encontrar outras saídas para a realização. Pense, como será uma pessoa que não sente raiva? Ela não se inquieta, não se irrita e emputece com nada? Que triste é essa pessoa. A raiva nos conecta com o que há de mais valioso em nosso ser, são nossas necessidades, nossos desejos e vontades.
Agora, pensemos um pouco mais, porque a nossa educação moral pretende extinguir de nós esse sentimento? Bom, penso que é exatamente pelo desejo. Somos educados para não desejarmos por nós mesmos, mas para realizarmos desejos e modelos de estilos de vida predeterminados. Nossa cultura não aceita que os indivíduos se afirmem enquanto livres e desejantes. Livres e independentes da vontade dos pais e desejantes para além do que nos oferece a cultura. Ela também não sabe como lidar com os limites. O tema do limite na contemporaneidade é algo que inquieta vários estudiosos, pois estamos enfrentando sujeitos perdidos que atravessam a si e ao outro, sem noção de respeito pelo próximo e a si próprio. Como diria Perls, "O primeiro e último problema do indivíduo é integrar-se internamente e ainda assim, ser aceito pela sociedade." Encontrar o equilíbrio entre o seu desejo e as exigências e limites da sociedade é o grande lema do indivíduo civilizado.
Quanto a agressividade que advêm desse sentimento é algo que precisa ser respeitado e compreendido mais amplamente. Mais uma vez repito que não é o sentimento o problema, mas o modo como reagimos a ele. Precisamos receber uma educação que englobe a afetividade e nos ensine a lidar com os afetos de modo responsável. Agressividade não é destrutiva, ela é energia, é força propulsora, só precisa ser bem utilizada e canalizada. "Por meio desse domínio da agressividade tem início a adaptação ao outro. É 'fazer de conta', é 'não fazer mal', é encontrar os limites da tolerância do outro... e também fazê-lo conhecer os próprios limites." (LAPIERRE, André; AUCOUTURIER, Bernad. 2004, p.81)
Outra reflexão que pode ser feita é que a ira mostra que há a necessidade de um ajuste. Que é preciso haver um entendimento entre duas partes ou até mais. Ela nos coloca em contato com a necessidade do outro também. Quando estamos com raiva estamos diante de um impasse que precisa ser resolvido, ou se não for possível resolução, é preciso haver conformidade. A raiva, ao invés de te afastar do outro, como muitos pensam, te aproxima, pois será necessário resolver alguma coisa e a presença do outro é inevitável, as vezes. E assim, termino com Lapierre e Aucouturier (2004), "(...) o entendimento deverá ser um prazer e não uma obrigação. É o prazer de ser aceito, ao mesmo tempo, como sujeito desejante e objeto de desejo do outro; é uma tentativa de harmonização dos desejos." (p.85).
Foto: Jonas Araújo
Referências:
*VISCOTT, David. A linguagem dos sentimentos. São Paulo: Summus, 1982.
*LAPIERRE, André; AUCOUTURIER, Bernard. A simbologia do movimento: Psicomotricidade e educação. 3º ed. Curitiba - PR: Filosofart Editora, 2014.
Muito interessante.
ResponderExcluirTambém acho. ;)
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